Fragmento Urbano: Casa Miller de Jose Oubrerie

Este artigo foi escrito pelo designer e crítico de Seattle Evan Chakroff.

A Casa Miller em Lexington, Kentucky, é um manifesto construído: uma proposta ambiciosa para o futuro dos subúrbios em uma época de urbanização sem precedentes. Apesar de seu "pedigree" - projetado e construído pelo discípulo de Le Corbusier, José Oubrerie – e apesar de sua (apropriada) seleção como uma "obra prima" por Kenneth Frampton, o projeto permanece um tanto desconhecido e arquitetonicamente subestimado.

A casa deveria sem dúvidas ocupar um lugar no cânone das grandes obras de arquitetura residencial. A composição complexa por si só deveria inspirar inúmeras leituras formais, mas mais importante, a casa representa um modelo de vida comunitária em meio à constante mudança das estruturas familiares. É uma rejeição radical do estilo de vida do subúrbio que se tornou socialmente, economicamente e culturalmente insustentável.

© Samuel Ludwig

Desde o início do projeto, em 1987, um aspecto essencial do design foi a integração de "três moradias em uma casa". Os clientes eram um casal de idosos, e o projeto foi pensado para acomodá-los e, eventualmente, seus dois filhos, então na universidade. Oubrerie (quem, para esclarecer, foi meu professor e empregador, brevemente, na Ohio State University) procurou expressar a independência e a interdependência dos quatro membros da família através da junção das três moradias em uma única casa - as aberturas no piso e as tênues ligações ocasionais podem ser lidas como comentários sobre as relações ocasionalmente tensas dentro de qualquer família.

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O partido é a grelha de nove quadrados, que deveria ser conhecida por todos os estudantes de arquitetura, aparecendo como um diagrama organizacional em tudo, desde as casas pátio na Roma antiga, a pallazzi da Renascença, villas Palladianas, e as casas canônicas do movimento Moderno. A Casa Miller pertence a uma longa tradição de arquitetura residencial, mas aspira ser mais do que uma mera residência. É uma villa do subúrbio, evidenciando a influência do mentor de Oubrerie, Le Corbusier. Entretanto, dentro do projeto, é possível encontrar ecos de precedentes mais antigos.

Como em antecedentes históricos, o centro é aberto como um espaço comum, e o perímetro é relativamente fechado. O espaço central público é cercado por três áreas privadas, que tem a possibilidade de ampliar e se deslocar em planta, subvertendo o ideal de grelha reguladora. Estes volumes são elevados em pilotis e a grelha geradora só é evidenciada pela localização dos pilares. Como resultado, a área pública se estende vertical e horizontalmente, com o pavimento térreo quase inteiramente destinado ao espaço comum (se não público). Terminando em claraboias, este espaço é o axis mundi central da casa, um vazio vertical que proporciona foco e orientação.

© Samuel Ludwig
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Enquanto o pavimento térreo é relativamente aberto e caracterizado pelo espaço homogêneo, nos pavimentos superiores o espaço se torna diferenciado, e ganha especificidade programática. Em planta, três cantos da grelha se expandem e se tornam áreas delimitadas de habitação privada e o espaço intersticial é reduzido, entregue a passarelas e vazios. Estes espaços de circulação parecem comprimidos pela expansão das áreas programáticas, ao ponto em que passarelas e escadas parecem ter sido espremidos do envoltório adjacente, e se estendem até a paisagem circundante.

© Samuel Ludwig
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Estas escadas prolongadas são uma reminiscência das rampas estendidas nos últimos trabalhos de Le Corbusier (Mill Owners Association e Carpenter Center, particularmente), e parecem ter o mesmo propósito visual: sugerir um caminho público através do edifício. Através dessas manipulações formais, Oubrerie projetou uma estrutura com um complexo gradiente de privacidade. Como esperado, pavimentos superiores são geralmente mais privados em relação aos mais baixos, e um espaço "verde" ou uma área comum pública flui pelo térreo relativamente aberto. Acima, passarelas de acesso restrito conectam os vários volumes programáticos. Entretanto, esta hierarquia é quebrada pelas escadas estendidas, acessíveis diretamente a partir do exterior, e que tornam a casa altamente adaptável. O espaço de cada habitação pode ser tratado, e sublocado, como uma unidade separada.

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É interessante comparar a organização em corte - e a distribuição programática geral - da Casa Miller com o que talvez seja seu antecedente genético direto: Villa Shodhan de Le Corbusier (Ahmedabad, 1956). Os dois edifícios tem basicamente forma cúbica, com um telhado sobre pilares e aparentemente desconectado das paredes externas. A orientação do local é idêntica, com uma rotação de 45 graus a partir do norte, com cada respectiva fachada aberta ou fechada de acordo com a orientação solar. Ambos possuem pórticos de destaque que filtram o sol na face sudoeste. A porosidade do volume cúbico de alguma forma dilui a distinção entre interior e exterior (na verdade, isso acontece menos no clima temperado de Lexington). Percursos proeminentes se estendem até a paisagem como objetos esculturais nos dois casos.

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Talvez a semelhança mais notável seja o zoneamento do programa em corte. Nos dois casos, o térreo é voltado a atividades públicas, com espaço comum, cozinha, e áreas de serviços localizadas no pavimento térreo. Nas duas casas, o pavimento acima contem banheiros e áreas de estudo privados.

Enquanto em Shodhan o piso se mantém em geral intacto, acentuando a separação programática, na Casa Miller ele é quase ausente, substituído por passagens estreitas e terraços, e as áreas de habitação privada são ligadas internamente em corte e diferenciadas das áreas públicas pelo uso dos materiais, bem como a separação física.

© Samuel Ludwig
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A Casa Miller, portanto, se constrói sobre um grande número de precedentes históricos, mas ajusta a atualiza a fórmula: enquanto a história da habitação unifamiliar está codificada no projeto, o arquiteto inovou neste contexto, e criou um trabalho de arquitetura que parece mais apropriado para a organização familiar dos dias de hoje.

A complexidade da gradação público-privado se reflete na complexidade da fachada e do envoltório. Enquanto o projeto da casa foi claramente guiado por requisitos de programa (com um olho nos precedentes), a composição da fachada demonstra um arquiteto igualmente preocupado com estética, e com a manipulação de um diagrama gerador.

Em esboços iniciais, Oubrerie propôs um "cubo explodido" com cada face (incluindo a cobertura) de uma composição e estrutura autônomas. Este diagrama persistiu, e fotos da construção mostram o concreto derramado enquadrando o vazio interno da casa antes da colocação de qualquer aço, e antes que o trabalho finalizado e a colocação de vidros pudesse definir com precisão a extensão do invólucro. (Estas fotos, espero, serão publicadas na futura monografia). O diagrama do "cubo explodido" liberou cada superfície da dependência de qualquer outra, ofuscando a extensão exata do espaço interior, e deu a cada uma delas um alto grau de autonomia, que foi conceitual e fisicamente mantido no projeto e ao longo do processo de construção.

Cada fachada, então, se desenvolveu como uma entidade separada, de alguma forma afetada pelas adjacentes, mas mantendo sua independência. Conforme o processo projetual progrediu, Oubrerie foi capaz de evoluir cada fachada de uma simples composição formal para uma organização altamente específica de elementos arquitetônicos inter-relacionados, cada um referenciando diferentes precedentes e representando a licença artística moderada pelas necessidades do programa e por considerações ambientais.

Como cada fachada foi tanto concebida quanto construída como uma estrutura independente, será útil considerar o desenvolvimento criativo de cada uma separadamente, ainda que sejam parte de uma continuidade global.

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A fachada noroeste é o ponto lógico para começar, sendo aparentemente a mais intacta, e a primeira fachada avistada quando se aproxima da casa. Oubrerie aponta Palazzo Farnese como uma inspiração para ela, e ambos de fato compartilham algumas afinidades. O sistema proporcional desta fachada parece sair de ideais renascentistas, mas não mais do que as fachadas das primeiras obras do mestre de Oubrerie, Le Corbusier. Enquanto a fachada foi perfurada várias vezes (pela passarela inserida, pelo volume da cozinha revestido em madeira emergindo do térreo, pelo banheiro da filha perfurando, e por janelas que cortam emoldurando vistas da paisagem), permanece a mais completa - e plana - das quatro fachadas. A superfície do "cubo expandido" é quase intacta: seus limites são claramente marcados pela extensão das paredes de concreto.

A solidez dessa fachada é apropriada: a orientação noroeste não é propícia à modulação de energia solar, e esta fachada é voltada para o subúrbio, uma vista não particularmente atraente. A fachada é usada com bons resultados como aproximação pela calçada, conforme sua aparente frontalidade se revela como um conceito, quando a fachada principal da entrada surge ao virar a esquina.

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A fachada de entrada (nordeste) retem uma ideia de superfície, mas um pouco separada, perfurada pela cobertura da entrada, e rasgada para revelar um dos volumes de estar interior. A caixa de escada emerge como um objeto discreto, e prenuncia o colapso da superfície na fachada sudeste.

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Na fachada sudeste, a noção de superfície plana se quebra totalmente. Aqui o concreto dobra sobre si mesmo para delimitar as áreas comuns da casa (jacuzzi, sala de mídia, biblioteca), e o volume da habitação privada é exposto. Esta fachada é uma coleção de objetos discretos, derivando sua forma do programa interno.

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Igualmente inspirado pelo “brise-soleil” corbusiano e pelos pórticos do vernáculo americano, a fachada sudoeste se revela a mais ambiciosa, e a mais ambígua. Documentos da construção mostram sua independência completa dos volumes internos, conectada apenas por passarelas adicionadas quase como que posteriormente, ainda que seja a mais ocupável das fachadas, acessível a partir de todos os níveis da casa.

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Estas conexões com o exterior a partir dos volumes revestidos em madeira da habitação e das passarelas permitem que esta fachada funcione como um espaço a ser habitado, e não uma superfície de fechamento. Entretanto, esta é sem dúvida a mais plana delas: o plano estabelecido pelo pórtico em grade é ininterrupto, e restabelece o sistema de proporções clássicas evidente na fachada noroeste, mesmo chegando até o canto para acompanhar a linha da cobertura

A fachada sudoeste, portanto, ocupa uma área de transição entre a fachada noroeste plana e a sudeste, tridimensional, como evidenciado pela composição no canto. No canto oeste, alinha-se com o lado e completa a superfície da fachada noroeste, ainda que no canto sul falte um apoio do pórtico: uma calha sugere a continuação da grelha, mas permanece incompleta. Não há conexão direta com o sudeste, o pórtico é um objeto discreto em sua coleção.

Cada fachada, embora conceitual e estruturalmente independente, é parte de uma continuidade. De Noroeste a Nordeste, de Sudeste a Sudoeste, o projeto evolui ao longo de vários gradientes: de fechado a aberto, de privado a público, de plano a plástico, de inabitado a habitado. A progressão de noroeste a nordeste a sudeste é bastante clara, e a fachada sudoeste pode ser vista como uma ligação com o começo da progressão: enquanto é a mais aberta, habitável e plástica das fachadas, também estabelece um plano ao longo da grela do bries-soleil.

Quando Oubrerie cita o classicismo, o de Stjil, a desconstrução, e a arquitetura vernacular americana como influências para as quatro fachadas (NO, NE, SE e SO, respectivamente) fica claro que há um interesse aqui em uma história abrangente, bem como na manipulação formal. Isto, entretanto, não deve ser tomado como um exercício puramente acadêmico: as estratégias formais únicas das fachadas individuais criam uma variedade de espaços em torno do exterior, e a progressão em sentido horário a partir de noroeste aumenta a abertura, acessibilidade, e ambiguidade entre interior e exterior. Como tal, esta não é uma visão literal da história arquitetônica, mas sim uma internalização e redistribuição de suas lições com um olho afiado para a orientação do terreno e as necessidades programáticas.

Enquanto a Casa Miller pode ser um edifício difícil de se compreender, fica claro que cada movimento formal ousado foi cuidadosamente considerado, e executado com a perícia de um artesão. Além do profundo conhecimento de precedentes históricos, do planejamento inovador para a evolução do uso e da riqueza compositiva evidente em cada superfície, o prédio é uma caixa de tesouro de detalhes arquitetônicos.

© Samuel Ludwig

Por fim, o poder da arquitetura reside no desafio às normas vigentes, e aqui normas de composição, urbanismo e estrutura familiar são questionadas. Enquanto os subúrbios perdem seu apelo em uma época de centros urbanos rejuvenescidos e aumento dos preços dos combustíveis, o experimento de Oubrerie de densidade suburbana parece mais relevante do que nunca. A Casa Miller é um fragmento urbano, aparentemente retirado dos bairros mais densos de Paris ou Hong Kong, e transplantado para o interior rural de Kentucky. Ao proporcionar esse momento de intensidade urbana, cercado por campos verdes, é possível ler uma atitude sustentável em relação a terra, e um apelo para a preservação de ambientes naturais. (Esta leitura é infelizmente negada pelos subúrbios). Enquanto o prédio em si pode parecer desnecessariamente complicado, fragmentado, isso só serve para aumentar a sensação de caos urbano no interior, e traçar um contraste com a arcádia circundante.

A Casa MIller também pode ser considerada um fragmento de um sistema maior e repetitivo: como funcionaria uma cidade composta por Casas Miller? Que tipo de sociedade produziria? (Penso que um "tapete" de Casas Miller seria semelhante ao Venice Hospital de Corbusier, ou a proposta de Candilis-Josic-Woods’ para Frankfurt).

Mais uma vez, a Miller House está à venda, e portanto ameaçada de demolição. A casa está vazia há anos, e sua destruição parece tão inevitável quanto a transformação da região anteriormente rural em uma paisagem de cul-de-sacs e McMansions. Isso é lamentável para estudantes e arquitetos que estudariam a casa, mas mais ainda para a sociedade, onde o design é muitas vezes subserviente ao mercado, e onde o status quo parece às vezes tão inadequado. A Casa Miller é uma ferramenta pedagógica, uma interpretação construída da história da arquitetura, um comentário sobre a evolução da unidade familiar moderna, e uma proposta visionária para a vida comunitária em uma era de urbanização em massa.

Fotografia pelo designer Samuel Ludwig. Mais imagens da Casa Miller aqui.

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Sobre este autor
Cita: Rosenfield, Karissa. "Fragmento Urbano: Casa Miller de Jose Oubrerie" [Urban Fragment: Jose Oubrerie’s Miller House] 12 Out 2013. ArchDaily Brasil. (Trad. Arruda, Murilo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-145926/fragmento-urbano-casa-miller-de-jose-oubrerie> ISSN 0719-8906

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